sexta-feira, 2 de maio de 2014

Mina da Juliana – uma história de resistência. 2ª parte : A resistência.

No ano de 1948, uma jovem professora deslocava-se para a Mina da Juliana, onde ensinava na escola primária, através de difíceis caminhos rurais que atravessavam montados e barrancos, num carro de mulas puxado pelo seu ainda mais jovem irmão [uma nota pessoal: a professora era minha tia e seu irmão meu pai]. Somente no ano seguinte, 1949, se dá início à construção da estrada municipal entre a Mina e Santa Vitória, sede da freguesia, minimizando o isolamento dos habitantes dessa aldeia.
Não durou vinte anos, essa estrada. A construção da Barragem do Roxo, levou a que tivesse de ser desenhada uma outra, um pouco mais extensa e com um traçado menos reto, já que a primeira seria “engolida” pelas águas, tal como a sua primeira ponte, junto a Santa Vitória e o Monte da Corte Ripais, que ficava bem perto e que foram ambos submergidos. No caso do monte, foi mesmo construído um novo, um pouco mais acima do anterior.
O súbito enchimento da barragem, em 1968 não poupou a Mina da Juliana. Não de uma forma tão radical e dramática como algum tempo depois, em Vilarinho das Furnas, e mais recentemente na Aldeia da Luz, uma parte da aldeia foi invadida e as suas casas destruídas pelas águas. Alguns dos habitantes foram alojados em casas de familiares, outros em tendas do exército que tiveram de ser instaladas no local, outros optaram por deixar a sua terra e procurar nova vida, em Portugal ou no estrangeiro.
Depois do encerramento da quase totalidade das minas, era mais um rude golpe na vida dos habitantes dessa pequena e isolada localidade, que via muitos dos seus filhos sairem para enfrentar o futuro noutras paragens.
Mas, tal como no resto do País, a Mina da Juliana “renasceu” em 1974, com o 25 de Abril e a liberdade conquistada. E, principalmente, com a implantação de um poder local novo, democrático, e que vai contribuir para que as pequenas comunidades não desapareçam do mapa, destino a que estavam condenadas no tempo da ditadura.
Terá sido um dos momentos mais emocionantes que vivi, logo após a implantação da democracia, a ligação da luz elétrica na Mina Juliana, em 1976. Todos os presentes, começando pelos seus habitantes, os que se tinham deslocado propositadamente para assistir aquele momento histórico (como eu), os novos autarcas (recordo sobretudo o José Carlos Colaço, primeiro presidente da Câmara de Beja democrática), viveram de forma intensa e emocionada, os primeiros raios de luz que saíam dos candeeiros que passavam a iluminar aquelas ruas e das portas e janelas das habitações até então iluminadas a petróleo.
Ainda fruto do 25 de Abril, os habitantes da Mina da Juliana, tal como milhares de outros do Alentejo,  depositaram, mais tarde, as suas esperanças na Reforma Agrária, concretizada com a formação da UCP Vanguarda do Alentejo, sedeada em Santa Vitória, mas que incluía algumas grandes propriedades próximas, como a Faleira ou a Malhada. Uma população que, nas eleições realizadas após o 25 de Abril, sempre votou maioritariamente à esquerda, via nessa transformação revolucionária, uma janela de esperança para uma vida melhor e para uma aldeia mais desenvolvida e com melhores condições para todos.
Com o fim da Reforma Agrária, verifica-se uma nova vaga de emigração, interna e externa, de muitos trabalhadores que perderam o seu trabalho. Mais um conjunto de “mineiros” que engrossa uma diáspora que se espalha pela Europa (França), América (Canadá) e pelo nosso País (curiosa é a existência de uma significativa colónia de originários da Mina da Juliana, em Praias do Sado, no Concelho de Setúbal).
Não obstante esta sangria que se tem verificado ao longo de décadas, a população da Mina da Juliana, ainda que vá diminuindo, a exemplo do que acontece um pouco por todo o interior, tem dado provas de uma resistência que deve ser enaltecida e que tem evitado o fim da localidade, quer quando se verificou o fim da atividade mineira, quer quando as águas da barragem destruíram casas e outras construções destinadas a várias atividades económicas.
Essa resistência tem sido reconhecida pelos órgãos do poder local – Câmara Municipal e Junta de Freguesia – e, graças a esse reconhecimento, a Mina da Juliana teve nas últimas décadas a valorização que os seus habitantes merecem : o abastecimento de água e o saneamento básico, as ruas asfaltadas, o centro de convívio e o posto médico, o parque infantil e até um campo de futebol  (quando, na década de 80 do século passado, as águas da barragem recuaram drasticamente e os jovens da terra quiseram – e conseguiram – participar no campeonato distrital do INATEL). O problema a seguir foi quando a barragem voltou a encher, inundando o campo, deixando apenas metade das balizas à vista.
Por outro lado, foi a construção do importante complexo agro turístico nas imediações que trouxe uma outra aspiração: a construção da estrada até Albernoa e ao IP2, até então um caminho de terra batida sem condições e que hoje liga as três localidades (Albernoa, Mina (e Monte) da Juliana e Santa Vitória), uma aspiração de décadas, permitindo o fluxo dos residentes, visitantes e turistas.
Mesmo com a escola encerrada e com as crianças a terem de se deslocar para a escola do 1º ciclo de Santa Vitória, a Mina da Juliana tem a possibilidade de receber a Biblioteca Andarilha que, a partir da “biblioteca-mãe” aí se desloca duas vezes por mês, levando os livros, os jornais, a cultura e, sobretudo o afeto, para combater o isolamento.
E é  para comemorar esse espírito de resistência e de amor à sua terra, que os residentes e os naturais que vivem fora, organizam, de há alguns anos a esta parte, um encontro, onde convivem, se divertem e, sobretudo, se reencontram, ao fim de muitos anos de afastamento. Costuma ser em Agosto e é divulgado no grupo de amigos criado no Facebook , onde basta procurar por Mina da Juliana.
Não será, por isso, por acaso, que na excelente reportagem publicada em maio de 2013 neste mesmo jornal, da autoria de Bruna Soares e com as fotos do José Serrano ( http://da.ambaal.pt/noticias/?id=3170 ), que para além da reivindicação da reparação da estrada para a sede da freguesia se exige “uma ligação à Internet rápida, para que, assim, se possa quebrar um pouco o isolamento”. Em nome da história da Mina. Em homenagem à resistência dos seus habitantes, antigos a atuais.
2 de Maio





Traçado da estrada Santa Vitória-Mina da Juliana 
Arquivo Fotográfico Municipal
Trabalhos de construção da estrada (1949)
Arquivo Fotográfico Municipal

A invasão das águas da barragem
Foto : Diário do Alentejo - 1971

Campo de futebol inundado
Boletim Municipal de Beja - 1996

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Mina da Juliana – uma história de resistência. 1ª parte : A história.


Em 1891, o arqueólogo algarvio Estácio da Veiga, escrevia que “…a mina da Juliana mostra porém ter sido primitivamente explorada n’uma ephoca em que o estanho da região alentejana já era aproveitado (…) pois no interior d’ella e em muita profundidade foram encontrados alguns machados e uns escopos de bronze…”. Por isso, afirmava “…a mina da Juliana deve ser portanto considerada como estação da idade do bronze” (Antiguidades Monumentaes do Algarve, vol. IV, págs 210 e 211). Estas afirmações eram acompanhadas por desenhos das peças, efectuados pelo próprio.
Algumas décadas depois, outro arqueólogo, Abel Viana deu-nos a conhecer um vasto conjunto de cistas (sepulturas formadas por quatro lajes em pedra, cobertas por uma outra, maior e mais grossa, por vezes com imagens gravadas) da Idade do Bronze final (cerca do século X a.C, ou seja, há mais ou menos 3000 anos). Segundo ele e Fernando Nunes Ribeiro, seu companheiro nessas deambulações, "essas sepulturas são(...) muitos abundantes no sul do País, mas é precisamente no concelho de Beja (...) muito principalmente na zona ocidental (freguesias de Ervidel, Santa Vitória e Mombeja) que estas sepulturas abundam e que, por outro lado, espólios mais notáveis têm fornecido." (Arquivo de Beja, vol. XIII, 1956, pág. 157).
Por este motivo, Abel Viana várias vezes se deslocou a locais da freguesia de Santa Vitória, chamado para ver sepulturas, encontradas durante os trabalhos agrícolas, como aconteceu em Janeiro de 1943, no Monte do Ulmo, ou em Dezembro de 1949, no Monte da Corte d’Azinha (ambos entre essa aldeia e a Mina da Juliana). Para além das lajes gravadas (a mais conhecida é a chamada “estela da Pedreirinha”) são de destacar os vasos do tipo “cerâmica de Santa Vitória” que, tal como a estela se encontram no Museu Regional de Beja (coleção Fernando Nunes Ribeiro).
A existência deste grande conjunto de vestígios da Idade do Bronze, não significava, no entanto, para estes dois arqueólogos, a exploração mineira a que Estácio da Veiga se refere: “… nada permite concluir em prol da relacionação destas cistas com as minas de cobre” (ibidem). Esta tese tem vindo, ao longo dos anos, a ser contrariada e, fruto de trabalhos realizados mais recentemente, é possível estabelecer essa relação : A forte capacidade de atração desta região para a fixação das comunidades da Idade do Bronze dever-se-á à existência de uma combinação de diferentes tipos de recursos básicos proporcionados pelos solos de elevada capacidade agrícola e também pela facilidade de acesso a zonas mineiras [onde se inclui, naturalmente, a Mina da Juliana](C.Bottaini, M.Serra e E. Porfírio, Metais da Idade do Bronze do Museu de Beja - http://www.academia.edu/3782859 ).
Em relação à época romana, não há muitos elementos que nos falem da exploração mineira na Mina da Juliana, mas o mais natural é que tal tenha acontecido, dado que esse local se integra na Faixa Piritosa Ibérica e que se conhece a presença desse povo na Mina de São Domingos ou em Aljustrel, tendo-nos, neste último caso, deixado as famosas Tábuas de Bronze de Vipasca.
Num estudo de Maria da Luz Oliveira ( Copper Ores and Settlements in the South of Portugal -http://www.academia.edu/2387747 ), é citado o “Catálogo Descritivo da Secção de Minas da Exposição Industrial Portuguesa de 1888”, onde, entre outras, se refere a Mina da Juliana (designada como Cova Redonda ) como sendo uma das exploradas pelos romanos no distrito de Beja. A mesma autora refere ainda que, quando em 1872 se deu início à exploração mineira, esta tem lugar “onde os romanos deixam traços da sua passagem” (pág. 6).
Sobre o período romano, citemos ainda uma hipótese de Maria da Conceição Lopes. Em nota de rodapé na sua obra “A cidade romana de Beja”, esta investigadora sugere que “… a via [de Pax Iulia a Vipasca] poderia passar um pouco a sul de Ervidel e Santa Vitória, indo pela Mina da Juliana” (pág. 82). Como a própria afirma, sobre esta via “nada sabemos”, referindo também a hipótese de Jorge Alarcão, que faz passar essa estrada por Santa Vitória.
De resto, para além desta referência, esta obra, que é a dissertação de Doutoramento da autora, no final de 2000, não inclui qualquer indicação sobre a exploração mineira na Mina da Juliana, nem a aponta na Carta geral dos sítios arqueológicos que integra o livro (ainda que a menção à passagem da estrada nesse local possa pressupor essa exploração).
É na segunda metade do século XIX que, fruto da Regeneração e do Fontismo, se vai dar um incremento nos transportes e na industrialização do País. Verifica-se, então, aquilo a que se designa por “febre mineira”, com a atribuição de milhares de concessões por todo o território, incluindo, naturalmente, Beja (em 1865 estavam registadas 461 minas neste distrito).
Assim, através duma publicação de 1963, da Direcção Geral de Minas e Serviços Geológicos, intitulada “Minas concedidas no continente desde Agosto de 1836 a Dezembro de 1962”, sabemos que, entre 1865 e 1924 foram concedidas 28 licenças para exploração de minas no concelho de Beja, das quais onze na freguesia de Santa Vitória, igual número em Albernoa, quatro nas Neves e duas na Trindade, sendo a grande maioria de manganês. Em Santa Vitória apenas duas eram de cobre, a já citada Cova Redonda (Juliana), concessionada em 1872 e a Juliana nº 1, em 1910. Nesta freguesia a última concessão, da Pedra Furada, deu-se em 1924.
A concessão de licenças para a exploração das minas, não significou, no entanto, um significativo acréscimo do operariado mineiro no concelho de Beja. No Anuário Estatístico de Portugal, de 1885, citado na obra de João Carlos Garcia “A navegação no Baixo Guadiana durante o ciclo do minério” (1996), havia apenas 113 mineiros, dos quais 57 homens, 24 mulheres e (típico da época) 32 menores. Nada que se compare com os 390 mineiros de Barrancos ou os 2855 de Mértola, neste último caso fruto da grande expansão da Mina de São Domingos (pág. 157)
É nesta altura que surge um nome, de que se irá falar na aldeia da Mina da Juliana até ao encerramento da sua última mina. Trata-se de “Alonso Gomes, filho de um emigrado espanhol, que a partir de muitos e complicados negócios no sector mineiro terminará abastado proprietário urbano e latifundiário, armador e empresário, comerciante em vários ramos” (ibidem, pág. 154).
Para além de minas no concelho de Mértola (onde residia), como a da Cruz do Peso (Alcaria), concedida em 1883, possuía ainda muitas outras concessões, em Castro Verde (Ferragudo), Aljustrel (Serra dos Feitais), Beja (Herdade do Vilar) ou mesmo em Gondomar, no norte do País. Com vista ao transporte do minério, iniciou, em 1870, uma ligação, pelo Guadiana, entre Mértola e Vila Real de Santo António que, face ao sucesso que teve, deu origem a uma carreira regular de mercadorias e passageiros entre essas duas localidades. Mais tarde, por solicitação do governo, iniciou “…um serviço de navegação regular, entre Lisboa e portos no Algarve, com escala em Sines…” criando a uma companhia de navegação, proprietária de oito navios, todos eles baptizados de “Gomes”, que viria a terminar em 1905, após o falecimento do seu fundador, um ano antes (http://naviosenavegadores.blogspot.pt/ , 24 Março 2008).
Data do início do século XX a fundação da povoação que iria albergar os mineiros e as suas famílias. A designação Mina da Juliana teve a ver com o facto de estar localizada na herdade com o mesmo nome, que também deu, como vimos, nome a algumas das minas também aí situadas. Vista de cima, o seu núcleo central bem poderia ser um bairro mineiro de Aljustrel ou de São Domingos, tal o rigor geométrico com que as suas casas foram construídas (foto de Mariano Martins, em 2009).
A exploração mineira terminou quase totalmente nas duas primeiras décadas do século XX. Só uma das minas, a do Vilar, situada na outra margem da ribeira dos Louriçais, propriedade da firma Alonso Gomes, Herdeiros, sobreviveu até 1964. Com o seu encerramento, alguns dos mineiros foram ainda trabalhar para uma das poucas minas de manganês que sobrevivia na vizinha freguesia de Albernoa, muitos seguiram para outras partes do País e do estrangeiro.

A resistência dos habitantes da Mina da Juliana será objecto da segunda parte deste trabalho, a publicar na próxima semana.
25 Abril





Machado do bronze da Mina da Juliana
Museu Regional de Beja.
 Foto de Francisco Paixão

Foto de Mariano Martins - 2009